2012

Renata Tassinari: A Pintura na Caixa - Paulo Venâncio Filho

Galeria Pilar e Lurixs Arte Contemporânea

A pintura atual de Renata Tassinari é feita toda de quadrados e retângulos, sempre. É um todo sempre dividido em quadrados e retângulos. A tela se divide em partes iguais. Aí está um método bastante simples, mas que deixa uma dúvida: são partes que são acopladas ou é o todo que é dividido em partes? Ou ainda, trata-se de uma única superfície ou uma montagem de superfícies? O que se pode dizer é que são partes heterogêneas, quase incompatíveis, antagônicas até: pintura, acrílico e madeira. A nítida presença da tinta, a transparência do acrílico e a opacidade discreta da madeira estão juntas lado a lado. Tudo somado, o resultado poderia ser desastroso. Mas o sutil diálogo entre as qualidades de cada uma das partes manifesta uma conversa altamente civilizada que traz em si uma já longa vivência da pintura. Não são experimentos simplesmente, tão pouco projetos conceituais, ainda que seja um pouco dos dois, convertidos a um programa exploratório de uma pintura da/na atualidade, esta que está aqui.

Desperta imediata atenção essas presenças nada habituais ao espaço pictórico; madeira e acrílico. Aparentemente nada tão contrário à pintura do que a neutralidade do acrílico. Como combinar, sem estranhar, a superfície acrílica, sintética e inexpressiva, com a expressividade e a materialidade, ainda que mínimas, da pintura? Como realizar esta combinação paradoxal e também contemporânea sem submeter uma à outra?

Retirar o acrílico da banalidade, do vulgar utilitarismo;quer provar que na arte não há material que não possa assumir uma relevância plástica.

Inicialmente, imagino que Renata Tassinari toma o acrílico, apesar da sua transparência, como um obstáculo. Obstáculo transparente: mais um possível paradoxo que se apresenta. O acrílico, a princípio, parece estar entre as superfícies que expelem e repelem a pintura, por outro lado é um dos materiais freqüentemente usados como moldura determinando assim os limites do quadro. O acrílico pode estar acima, abaixo, do lado, mas não dentro, de modo que poderíamos incluir este procedimento de Renata entre aqueles que, na longa lista que desde o início do século XX, buscaram levar para o espaço pictórico elementos diversos do mundo real. Porém a superfície transparente do acrílico, por onde se vê a pintura e que também reflete o ambiente em volta, sugere outra tela, que não é somente a da pintura. Se é que este raciocínio faz sentido, estamos então, dentro da experiência corrente do mundo digital, onde realidade e imagem se dissolvem na Tela, entendida aqui no duplo sentido de tela da pintura e tela da projeção. Daí também o duplo sentido com que os trabalhos se apresentam: pintura e caixa. Pintura na caixa podemos chamar assim, como a imagem no monitor. Caixa cujo limite é um hard-edge físico, não ótico. O que torna esta pintura um quase objeto ou um objeto quase pintura. Pois é este “quase” que dá ao experimento interesse. Pois a sensação imediata é a da coisa pronta e que está até dentro mesmo da sua própria caixa. Pintura-valise, com um sentido portátil por assim dizer, que chegamos a ter o desejo de sairmos com ela debaixo do braço.

Assim como o acrílico, a folha de madeira que aparece em algumas pinturas, um recorte ao mesmo tempo de material e de superfície, remete também ao material mais tradicional usado para molduras. A fusão com a moldura num objeto, mais até que a apropriação da moldura pela pintura introduz certo componente conceitual, uma indagação meta-pictórica discreta, mas latente que vai além da operação plástica. Ocorre então um possível jogo de possibilidades semânticas e sintáticas com os elementos do quadro. Seria uma expansão da moldura sobre a superfície do quadro ou uma oposição entre duas qualidades de superfície? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? De fato a trama da madeira, os veios e nós, sugerem um tromp l’oeil ao mesmo tempo em que enfatizam o caráter de objeto do quadro. Entretanto estas operações opostas são como que absorvidas pela serena arquitetura visual que os organiza. Esta pintura de certa forma parece meditar sobre a estridência visual contemporânea que nos atinge em todos os espaços; públicos e privados. Estridência que se encontra na atual proliferação de telas. Não há hoje como escapar de uma tela; da onipresença das telas. Não só da tela que é o monitor como das imagens incessantes da tela.Pois limpar a tela pode ser muito bem o desejo forte desta pintura. Mas limpar de um modo ímpar: limpar com cores. Limpar com cores limpas. É como se elas viessem embaladas, intocadas, puras. A cor na pintura simulando a virginalidade das coisas novas, nunca usadas antes, absolutamente ready-mades na sua aparência. Da sua força decorativa, digamos matisseana, tão intensa na trajetória de Renata, pode impor um resoluto esquema prático, quase um ready-made cromático. Resolutamente monocromáticas, de uma expressividade minimal, claras e serenas, as cores buscam também entre si uma aproximação, um convívio, as diferenças tonais são reduzidas e o contraste, quando há, ainda é um acorde consoante.

Não há também como não associar esta pintura as superfícies da arquitetura que nos abrigam. Não são também acrílico, pintura e madeira uma espécie de reconfiguração da janela, parede e chão? E os retângulos e quadrados não estão eles também em relação com os espaços arquitetônicos mais comuns que habitamos? Temos então uma pintura tanto construtiva como também “construção”, consentânea ao espaço construído. Assim como a arquitetura faz uso de materiais de qualidades díspares, do mesmo modo faz esta pintura. E discreta consonância de elementos discordantes do caótico espaço contemporâneo que ela realiza, recortando elementos simples e combinando-os, sugere um modelo de habitar a superfície do quadro. Olhar também é uma forma de habitar.