2009

A Cor e os Dilemas da Experiência - Rodrigo Naves

Lurixs Arte Contemporânea e Studio Buck

Num depoimento de 1943, Matisse afirmava: “Sinto por meio da cor, de modo que é sempre por meio dela que organizo minha tela. Mas convém que as sensações sejam condensadas e que os meios utilizados sejam levados à sua expressão máxima”1. Não seria de esperar afirmação diferente de um dos maiores coloristas de todos os tempos. E basta olhar para O ateliê vermelho, de 1911, para nos convencermos que de fato Matisse parecia relacionar-se tão de perto com o mundo que os contornos e limites da realidade se viam prestes a se dissolver na matéria colorida que lhe dava corpo e verdade. Mas o pintor sempre deixou claro que de pouco adiantaria esse sentimento generoso da vida se ele não encontrasse os meios de expressão que o tornassem obra, podendo assim ser compartilhada por outros homens e mulheres.Como escreveu o crítico inglês Clive Bell, “ninguém nunca sentiu pelo mundo sensível o que Matisse sentiu; ou, se sentiu, não criou um equivalente”.

Na sua pintura, a intensidade de cor revela uma certeza acerca da realidade sensível e, sobretudo, acerca da possibilidade de se estabelecerem vínculos em que ambos, indivíduos e mundo, configurem-se simultaneamente, sem violência ou submissão. E suas telas são o melhor exemplo dessa possibilidade. Por certo, essa relação afirmativa com o mundo não caracteriza toda a pintura moderna. Os expressionistas alemães, profundamente influenciados por Matisse, deram a suas cores um sentido quase oposto, no qual os contrastes de cor revelam uma estridência, um conflito entre os indivíduos e a realidade em que lhes foi dado viver. Matisse, Henri. “Depoimento”, em Matisse: escritos e reflexões sobre arte, tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, p. 219. Bell, Clive. “Matisse and Picasso”, em Since Cézanne. London: Chatto and Windus, 1922, p. 83.2

Seja como for — afirmativa ou conflituadamente —, me parece fora de questão que quase todas as correntes modernas para as quais a cor teve importância fizeram dela um elemento de acesso ao mundo, ainda que ele ameaçasse. Com Andy Warhol, as cores adquirem um novo significado. Elas pairam fantasmagoricamente sobre os traços em alto contraste obtidos a partir de uma foto — de Marilyn Monroe, de Elvis Presley, de um conflito racial etc. —, sem aderir a eles. A matéria do mundo não parece encontrar mais uma maneira determinada de se mostrar. E dessa cisão entre cores e coisas surge uma realidade esquiva, cuja afirmação escapa insistentemente.

A pintura de Renata Tassinari se forma em meio às mudanças por que passa o estatuto das cores e da realidade na arte contemporânea. E acredito que sua trajetória é representativa das transformações que conduziram o mundo sensível a uma posição ambígua e lábil. Numa das primeiras exposições em que deixa de lado a tensão com o figurativismo — em 1993, na Galeria André Millan —, suas cores procuravam manter um resíduo material pelo uso de papéis que se interpunham entre elas e as telas, bem como pelo espessamento das tintas, obtido pelo acréscimo de cera. O resultado tinha uma intensidade dúbia, pois a materialidade das tintas e dos papéis, em lugar de acentuar a vivacidade das cores, emperrava sua realização, já que adquirem uma presença excessiva, que podia por as cores em segundo plano. Cor e material trocavam de posição incessantemente, sem que o observador pudesse aderir a um ou outro.

Dois anos depois, na mesma galeria, suas pinturas deixavam de lado essa membrana que se intrometia entre as cores e a tela. Todavia, tanto a fatura de cada área regular de cor quanto a relação entre elas aprofundavam aquela dissociação entre a cor e sua aparência que caracterizava a série anterior, como se a cisão entre cor e matéria habitasse o próprio modo de aparecimento de suas cores. Algumas áreas de cor — os marrons, terra, grafite etc. — se viam fortalecidos pelo uso da encáustica, e a presença mais massuda possibilitada pela cera parecia devolvê-las ao mundo mineral a que as associamos. Mas, ao conferir a um azul uma densidade semelhante — um tom que em geral está ligado à representação da atmosfera, do ar, do céu —, a artista punha em xeque aquele mimetismo entre cores e materialidade que a norteava. E então azuis, marrons, terras e grafites voltavam a ser apenas cores, se é que esse nome ainda serviria para designar luminosidades que ambicionavam um travo corpóreo paradoxal e inquietante.

Nas pinturas em encáustica de Brice Marden também se podia identificar um dilema semelhante. Trabalhando com áreas de cor mais translúcidas que as de Renata Tassinari, o pintor americano restituía às cores uma situação em que aparentemente seu estatuto de fenômeno, de um acontecimento que se configurava diante de nossos olhos, readquiria intensidade. Como na tradição das velaturas, as cores pareciam acompanhar o movimento da luz que penetrava a superfície de cera, retornando a nossos olhos depois de um percurso que lhes devolvia densidade e experiência. Concomitantemente, o quase tonalismo de muitas dessas pinturas — ou seja, a proximidade dos tons de suas faixas de cor — amainava esse movimento de constituição do mundo, já que a proximidade tonal entre as várias regiões de um quadro reconduzia a percepção à observação de um jogo entre setores das telas, pois o tonalismo rebaixava a autonomia de que cada uma das faixas, levando-as a se complementarem reciprocamente.

Para Brice Marden e Renata Tassinari — e questões próximas poderiam ser apontadas na pintura de vários outros artistas contemporâneos, como Agnes Martin, Sean Scully, Jessica Stockholder, Cássio Michalany, Sérgio Sister, Paulo Pasta, Fábio Miguez, José Bernnô, entre outros —, a realidade contemporânea envolve práticas que dificultam uma experiência forte de seus acontecimentos. E por isso as cores deveriam adquirir um sentido diverso daquele que norteou a arte moderna. A reflexividade da cor de Matisse consistia na pergunta, pelas próprias cores, sobre a melhor maneira de um azul ou um vermelho se mostrarem e, assim, proporcionarem uma experiência emancipatória, de coisas que se mostravam sem constrangimentos ou assédios. Para parte considerável da melhor pintura contemporânea essa interrogação deslocou-se, passando a instilar nas cores uma dúvida sobre sua própria capacidade de proporcionar uma experiência da realidade.

Em sua mostra de 1998, na Valu Oria Galeria de Arte, Renata parece se esforçar para superar essa condição cindida da percepção contemporânea, tentando restituir a sua pintura um caráter mais afirmativo e sensorial. As cores abandonam as áreas rigorosamente delineadas e a fatura impessoal, e uma gestualidade sutil, meio morandiana, procurava reaproximar fazer e cor, atividade e experiência. Para isso a artista também pôs de lado a encáustica, e a presença mais imediata proporcionada pelo óleo levava a crer que suas dúvidas haviam conduzido a algumas certezas.

A trilha aberta aí, porém, não convenceu a própria artista. E em 2002, na Galeria Baró Senna, Renata dá a impressão de fazer uma tentativa radical, alegre e aflita ao mesmo tempo, de conferir às cores um poder de afirmação e positividade. Voltam as superfícies chapadas e as áreas delineadas com precisão. E regiões de cor altamente contrastadas convivem com outras quase opostas, tonais. Se de um lado a vizinhança de cores intensas e conflagradas fazia o elogio da autonomia e soberania de certas experiências, as leves passagens tonais vinham nos lembrar que no mundo sensível não há critérios absolutos ou definições unívocas, e que se não possuirmos termos de comparação não poderemos ir longe. E de novo elementos de uma mesma obra punham em dúvida a chance de uma unidade que proporcionasse uma experiência forte das coisas e de suas situações.

Traçado assim meio esquematicamente, o percurso da pintura de Renata Tassinari poderia sugerir uma constante oscilação entre noções de cor quase opostas. Para quem conhece mais de perto seu processo de trabalho o que sobressai é, ao contrário, a lealdade aos problemas e indagações que sua própria aventura levanta. No entanto, a importância de seus dilemas, por mais que dependam de uma determinação pessoal, advém justamente da capacidade de entrar em contato com situações abrangentes e relevantes da experiência contemporânea. Entre o grande artista moderno que experimentava o mundo pela cor e os sentimentos relutantes de nossos dias não se deram apenas transformações estéticas. A relevância da arte pop residiu justamente em por às claras um movimento que ia além da generalização dos meios de comunicação e das imagens, com o consequente reconhecimento de que em muitas situações não seria mais possível ter do mundo uma experiência direta, sendo necessário incorporar às próprias obras de arte a mediação própria dos conhecimentos de segunda mão. A própria convivência social vem adquirindo uma volatilidade que reforça a dificuldade de encontrarmos uma maneira eficaz de percebermos o mundo.

A partir de 2005, Renata Tassinari vem conduzindo sua pintura a uma impessoalidade crescente. As áreas de cor se tornaram ainda mais regulares, a fatura quase desapareceu, as cores ganharam um espectro maior — antes Renata tinha uma palheta bem mais característica — e alguns materiais (acrílicos, chapas de madeira) passaram a ser incluídos nas obras, com um estatuto semelhante ao das superfícies pintadas. A inclusão de elementos do mundo — madeiras etc. — poderia dar aos quadros uma maior concretude, um pouco distante da dimensão mais óptica das superfícies de cor. No entanto, a aparência final dos trabalhos se mostra ambígua, oscilando entre a artificialidade dos móveis de uma cozinha e as sutilezas da pintura veneziana do Renascimento, entre a evidência irrefletida dos tons saturados de uma página da internet e um equilíbrio complexo, obtido a partir de uma extrema familiaridade com as cores e com a maneira de dispô-las sobre uma superfície.

Em vários dos trabalhos realizados nos últimos anos, a artista utiliza chapas de acrílico que são pintadas por trás. Nessas regiões dos quadros, o observador se sente posto diante de uma situação paradoxal, que a meu ver sintetiza exemplarmente os paradoxos e dilemas que Renata Tassinari incorporou a sua pintura e que revelam a importância das questões que sempre a nortearam. Ao ter seu lado interno recoberto por uma cor, as chapas de acrílico tornam-se ainda mais refletoras de luz. Diante delas, o observador tem sua atenção despertada pelos brilhos produzidos por elas, que ao mesmo tempo parecem indicar uma intensidade radical de cor e sua impossibilidade, já que as cores propriamente ditas se encontram amortecidas por uma espessa camada de matéria — uma matéria transparente, sem dúvida, mas que anestesia a capacidade das cores afetarem nossa sensibilidade.

E estou convencido que essa característica de certas áreas de sua pintura termina por impregnar as próprias regiões em que as cores se mostram de forma direta, aquelas em que a artista pinta sobre outras superfícies (de acrílico ou não), atiçando ainda mais nossos sentidos e o desejo de aderirem a algo menos ambíguo e fugidio. E nesse jogo a própria intensidade dos fenômenos termina por revelar mais a artificialidade de sua condição do que a capacidade de nos remeter à realidade e seus significados. Diante dessas pinturas, experimentamos ao mesmo tempo algo da vivacidade das cores naturais — o verde das folhas de uma árvore, por exemplo — mais a neutralidade atraente de um anúncio de Coca-Cola. E, em vão, nos esforçamos para unir dois fenômenos que, por ora, ainda parecem ter naturezas incompatíveis. Isso pode ser incômodo, mas lembra de maneira notável a vida que levamos.

PUBLICADO EM RENATA TASSINARI . RIO DE JANEIRO, 2009 : FRANCISCO ALVES