2024

Reflexos - Felipe Scovino

Os títulos das obras de Renata Tassinari para essa exposição formam a primeira singularidade desse conjunto. Há um mecanismo de expansão aí, a construção de uma imagem que procura criar para as obras, fazendo com que elas deslizem ainda mais. Esse processo de persuasão e cumplicidade com o espectador sintetiza o movimento principal do trabalho – o de não se fixar, o de escorregar sempre numa alusão indecisa. Baleia II, Lanterninhas Marola, Leblon II (todos de 2023). Há uma sensação de deslocamento como se a cor se espraiasse como o leito de um córrego. E os títulos vão empurrando as obras ou a cor para todos os lados. Não são apenas pinturas, objetos, seja lá como queiram chamar, pois, acima de tudo, condicionam, algumas obras mais do que outras, uma vontade orgânica e condensam uma ideia ou imagem da natureza.

A cor nessas obras de Tassinari corre. Mesmo concentrada, adquirindo um certo grau de espessura, a cor deseja o movimento. A estrutura de acrílico, preenchida de cor, longilínea e quebradiça condiciona um deslocamento. Há decididamente a imagem metafórica de um rio e não é à toa, portanto, que alguns títulos, mais uma vez, evoquem esse universo das águas. Diria, também, que a falta de uma moldura para essas obras, daquela estrutura que “aprisiona” a forma, auxilia nesse estado de representação de uma cor que é puro fluxo. Poderíamos dizer também que a obra é formada por diversas molduras, que fragmentadas, exploram essa imagem de uma cor que se expande velozmente.

Mas outros movimentos também ocorrem simultaneamente nessas obras. Vejam a importância dos intervalos ou vazios sejam nos desenhos, pinturas ou objetos. A sequência dos desenhos da série Alba (2021), postos lado a lado, evidenciam não somente jogos entre cor e forma, mas novamente uma ideia de velocidade e transitoriedade: efetivamente colocam em disputa o branco não como ausência mas como modulador dessa experiência de mudança. Os campos cromáticos estão sempre se intercambiando, criando outras possibilidades de existência para o que parece ser o mesmo modelo de visualidade – um retângulo dividido em seis partes desiguais. Os intervalos ou espaços em branco têm uma influência tão decisiva quanto os campos de cor, porque eles definitivamente são cor. Eles ajudam a formatar o grid, o referente ao Minimalismo que o trabalho possui, ao mesmo tempo que ativam essa experiência da cor como sendo moduladora de espaços. E isso é acentuado pela palheta que a artista escolhe: são cores que provocam uma intensidade de luz na superfície do suporte; não há escolha por cores sóbrias, mas pelo roxo, vermelho, laranja, azul marinho ou um verde vigoroso.

Ainda sobre o branco e seu estado intervalar, em Lanterninhas Marola o que parece acontecer é a implosão do quadro. Ou melhor, aquilo que o delimitava – a moldura – é a forma e matéria da obra. A moldura partida, desmembrada em 6 partes dispostas horizontalmente, se desloca pelo espaço, imprimindo velocidade e, mais uma vez, a ideia associativa com o rio se faz. Os intervalos que separam esses feixes horizontalizados fazem e não fazem parte da pintura. Esse estado de dissolução e ruptura também aparece em outras obras. Narciso II e Narciso III (ambos de 2023), por exemplo, mesmo aparentemente sendo obras compactas, sem um aspecto fragmentado, possuem campos de cor que são intervalados pelo espelho. A unicidade é provisória, pois já se coloca em questão o corte ou interrupção. Quero enfatizar, portanto, esse aspecto da partilha – que ganhará um novo salto com a reflexividade, como veremos a seguir – aliado a um desejo do trabalho por ganhar o espaço. Não é à toa que Baleia II é uma instalação mesmo tendo como referência a pintura. Seu aspecto quebradiço, dividido em 3 “ripas”, retoma uma estrutura clássica desempenhada pela obra de Tassinari ao mesmo tempo que aponta para a tridimensionalidade e a conquista do espaço. A pintura deixa o seu estado sólido para se tornar uma ação do fluir. Tassinari está mais interessada no espaço e seus possíveis deslocamentos “aéreos” do que no plano. Para indicar, talvez, o caráter inesgotável, prospectivo, da própria pintura.

Essas obras, portanto, revelam uma tensão com os limites bidimensionais. Projetam, como disse no início, representações orgânicas que também se confundem com o corpo. São desejosas de uma incorporação desse sujeito que não é mais puramente agente passivo mas participante de uma experiência. Os espelhos contidos em algumas das obras especulam – tanto no sentido do espelhamento quanto no de investigar – um corpo partilhado assim como se revelam essas obras fragmentadas. As obras estão no registro do instável e do inconstante. Esses trabalhos estão empenhados em escapar das tentativas de completá-los e dominá-los assim como o corpo do espectador que se vê e é visto diante desse espelho. Para Tassinari, a pintura é uma ininterrupta tarefa da construção e, ao mesmo tempo, uma vertigem e uma precipitação que atravessam o corpo do espectador. O espaço serializado, o raciocínio estrutural e o especular constroem um ritmo plástico que se define justamente pela abertura e incompletude.

A divisão, uma pintura que se afirma pelas fraturas que determina, o vazio enquanto construção e não perda, o outro modo de enxergar as coisas e, portanto, a interrogação são condições que essas obras nos impõem. Os trabalhos aqui reunidos nos atentam para os múltiplos aspectos da cor, incluindo o seu caráter de reflexividade e transitoriedade. As cores e sua miríade de sentidos, formas, especulações põem em xeque qualquer expectativa de ordem e hierarquia. As formas, cores, nomeações e especulações desenvolvidas pela obra de Tassinari expõem um modo espesso, diverso e complexo.

 

Felipe Scovino