2014

Multiplo - Felipe Scovino

Felipe Scovino

Renata Tassinari e Felipe Scovino decidiram, no lugar de um texto crítico, publicar alguns comentários apontados por Felipe depois de uma conversa entre eles. Os comentários se deram sobre o processo no qual a obra de Renata se desenvolve e a detectar conceitos presentes que são veículos importantes para sua melhor compreensão. O resultado plástico nas suas pinturas independente do suporte empregado, suas influências, sua pesquisa envolvendo a cor, a concomitância e diálogo entre os desenhos e as pinturas, a aparição de fatores como suavidade e delicadeza nas obras em papel, o uso da colagem e de outros materiais além da tinta, sublinham uma dimensão original para a obra de Renata. Passemos à leitura desses apontamentos, que aparecem em blocos sendo intercalados pelas imagens das obras.

A pintura sobre papel, como estou denominando, e a produção em tela possuem o mesmo “peso” na obra de Renata Tassinari. Elas constantemente estabelecem um diálogo. São muito próximas porque fundamentalmente dialogam sobre as mesmas questões. A pintura em papel não é “menor” nem um “laboratório” para as telas, mas pelo contrário, ambas criam um elo perfeito e uniforme. Passados quase 30 anos de carreira, podemos perceber ao longo dessa trajetória coerente que a produção em papel, seja em fins dos anos 1980 ou início dos anos 2000, para me ater ao que está sendo mostrado nessa exposição, se constitui, ao lado das telas produzidas nesses períodos, na origem das obras mais recentes, às quais têm-se a moldura acrílica como suporte. O fio de luz branco, a espessura da cor, a virtualização do espaço e essa camada de cor que parece flutuar no espaço, a colagem, entre outros aspectos estão presentes em todas as suas fases de trabalho. Nesse sentido, o múltiplo especialmente concebido para a exposição cria esse fio condutor. Nesse encontro entre o múltiplo e as pinturas em papel percebemos todas as características de sua obra e especialmente a pesquisa com a cor.

O conjunto de obras do início dos anos 2000 que faz parte da exposição tem uma proximidade maior com a pintura norte-americana do pós-guerra, especialmente com Barnett Newman, Mark Rothko e Brice Marden. Refiro-me especialmente a duas circunstâncias: o primeiro, é a aparição dessa linha torta, irregular, descontínua mas que magicamente torna tudo mais lento e silencioso, e o segundo é a cor se transformando em luz, uma espécie de campo cromático que avança para além daquela zona em que graficamente se encontra.

Nas pinturas sobre papel (e uso esse termo para criar uma autonomia em relação ao desenho, pois entendo que é uma discussão sobre pintura acima de tudo) percebemos esse índice da experimentação que é marcante no seu trabalho. Além da colagem, há a cera que nesse caso reforça o componente matérico da cor que é a base da sua investigação, algo perseguido e reelaborado na sua obra. Gosto de pensar que Renata pesquisa uma espessura da cor.

As experimentações no papel e na tela sempre aconteceram de forma concomitante no seu trabalho. No início da sua trajetória, a aparição de madeiras cortadas e lixa já nos mostram essa qualidade de pulsação do material, dele partir do plano para o espaço, como se a tela não desse mais conta da quantidade de relações estabelecidas (com a cor, a forma e a sua própria estrutura), inchasse e passasse a vibrar. Nos papéis do início dos anos 2000, essa relação continua, mas é a cor quem estimula essa vibração. É uma cor-luz, que vibra de forma tão intensa que o suporte em que ela se encontra é limitado, não contem essa experiência dentro dos seus limites, e a cor acaba por se expandir para além do suporte.

A tela e o papel, pouco a pouco, mas de forma consistente e precisa deixam de ser simplesmente suporte para a ação da tinta e passam a ser parte constituinte do próprio trabalho. A colagem, o uso de recortes da madeira e posteriormente o acrílico sendo oculto pela tinta para atingir o trompe l’oeil ou uma imagem que engana os nossos olhos, sustentam a ideia de que é ali, no próprio espaço sacralizado da pintura, usando os elementos que dão forma a ela, que ela própria - pintura - se faz. Talvez o seu trabalho não seja uma pintura que dialoga ou reinventa a poética construtiva mas o contrário, pois ela a desconstrói.

Ainda em relação ao enunciado anterior, é que apesar - ou então por conta disso mesmo - do signo construtivo, o que as pinturas tornam visíveis são espaços arquitetônicos. Podemos ver essa circunstância nas telas e nas pinturas em papel realizadas concomitantemente entre o fim dos anos 80 e o início da década seguinte. Novamente o uso do trompe l’oeil ressalta não uma tentativa de criar um campo virtual e ótico para a cor, mas tornar claros que aquelas estruturas verticais de cor são portas, paredes, colunas, janelas, espaços de convivência.

Os trabalhos em papel feitos em 1990 caminham para uma zona na qual a economia de elementos é requisitada e se transforma em meio. Algo distante do que se conhecia na pintura ou no desenho feitos no Brasil até aquele momento, com raras exceções como a produção de Mira Schendel. Suas obras, portanto, encontram o zen-budismo no uso do espaço em branco e no traço rápido e forte mas não é exatamente isso que as orienta, têm uma aproximação com o construtivo mas também não é isso que as representa. É esse “meio do caminho”, esse estado de indefinição que torna a obra de Renata tão original.

Em especial nos seus papéis, há a aparição da cor ligada a uma suavidade ou delicadeza. Usei há pouco uma expressão que poderia ser traduzida também como “formas silenciosas” e que também faz sentido nesse momento. Mas essa suavidade torna-se visível em situações distintas. Nos papéis do início dos anos 1990, e especialmente naqueles em que o branco do papel é mais ressaltado, a linha é mais frágil mas ao mesmo tempo rígida, já nas obras do início dos anos 2000, e mais detalhadamente nos trabalhos de 2002, essa suavidade da linha se transforma em uma cor que se dissipa pelo papel, como se fosse luz ou uma estrutura aquosa.

No conjunto de obras produzidas em 1990 que constam nessa exposição, nota-se uma economia de gestos e linhas, pois o papel não é um agente secundário para elas, isto é, ele não é apenas um suporte para a aparição da cor mas desempenha, se isso fosse possível, uma “atuação” como cor. Nos intervalos entre a aparição e a ausência da cor, o branco é o elo que conecta, participa e ativa um espaço-entre. O branco ou o suporte-papel transforma-se em um espaço ativo que conecta e faz esses campos cromáticos vibrarem e interagirem.