1995

A Imagem e Dessemelhança - Rodrigo Naves

Galeria Millan

Uma observação de Sartre a propósito de O estrangeiro, de Camus, talvez nos forneça uma porta de entrada para o trabalho de Renata Tassinari. Comentando a combinação de naturalidade e estranheza que permeia o livro, Sartre nota que "entre as personagens de que fala e o leitor, Camus vai intercalar uma divisória envidraçada.(...) Parece que o vidro deixa passar tudo, mas impede a passagem de uma coisa: o sentido de seus gestos". Os atos mais prosaicos perdem sua normalidade e a existência aos poucos se transforma em algo opaco, embora familiar.

Os quadros de Renata Tassinari tem algo semelhante. A principio, a vivacidade de suas cores – sobretudo nas exposições de 1989 e 1993, ambas na Galeria Millan – conquista nossa adesão. O convívio entre as cores alegres e a variedade de áreas em que se mostram fala de um mundo pródigo e generoso, feito de relações límpidas, que se revelam claramente aos sentidos. Uma graça suave areja essa realidade despreocupada de suas origens e fundamentos. A vida parece conduzida por um compasso tranqüilo, capaz de concatenar os movimentos mais diversos.

Mas aos poucos essas aparências tranqüilas se nublam. Envolvidas pela cera que as aglutina, as cores relutam em se mostrar plenamente. Uma fina membrana se interpõe entre aquilo que seria a cor original e a que realmente vemos. Um turvamento as recobre de cima a baixo. Tudo nos quadros parece oscilar entre uma sedimentação crepuscular dos pigmentos – que então não mais viriam à tona – e uma afirmação decidida de sua aparência. E só essa oscilação permanece. Como na observação de Sartre, ficamos divididos entre o reconhecimento de um fenômeno corriqueiro – a cor – e sua manifestação refratada, esquiva. As cores são agora indicadores de acontecimentos arredios e não mais aquela serena certeza que se apresentara no início. As estruturas perdem um pouco a harmonia que as unia as cores e adquirem uma certa arbitrariedade, como se forma e cor já não pudessem caminhar juntas.

Os trabalhos da atual exposição dão seqüência à interrogação que movia as obras anteriores, mas colocando-a num novo patamar. A relação irresolvida entre definição e turvamento permanece. No entanto, ela se realiza a partir de tons mais discretos e de uma articulação mais simples das áreas de cor. Apesar dessa simplificação, o jogo entre o rigor geométrico das superfícies e seu aspecto final meio difuso nasce agora de um diálogo mas cerrado entre as partes das telas, prescindindo um pouco do travo proporcionado pela encáustica.

Num desses quadros, a faixa dourada da base intensifica (e é intensificada) a força da ampla região de negro que corre acima. O contraste entre ambos confere dinâmica à área mais escura, que assim se transforma num processo, deixando de ser a simples reiteração de uma tonalidade dada. Contudo, essa trajetória tem um desfecho surpreendente. Em seu desenvolvimento, o negro culmina numa área um pouco mais clara, meio tabaco. Sua afirmação parece conduzi-lo para fora de si, criando assim uma região dúbia, na qual já não se sabe ao certo o que é limite, desdobramento ou diluição. A falta de correspondência entre cor e sua área retira da superfície negra a identidade com base material. Em seu andamento, ela parece desgarrar da camada de tinta e pairar soberanamente sobre o suporte. A afirmação tem portanto algo de degredo.

Movimentos semelhantes ocorrem em quase todos os trabalhos. Num deles, um campo azul é confrontado com uma longa superfície grafite. As diferenças de área e de cor impõem uma interação entre ambos, um contato que produzisse, quem sabe, equilíbrio e unidade. Mas essa promessa não se cumpre. A presença espessa do grafite detém a leve expansão do azul. (À direita, a estreita faixa dourada sublinha essa relação contida.) O contraste entre luminosidade (azul) e corporeidade (grafite) não consegue conduzir a uma troca que transferisse a ambos suas diferentes qualidades. Corpo e luz se excluem, e um parece realizar as esperanças do outro, sem que esse movimento jamais se complete – embora a todo instante sejamos lembrados de uma síntese que produziria um fenômeno de rara força, uma luz corpórea, que nos oferecesse novos horizontes e uma plasticidade sem igual.

Os trabalhos de Renata Tassinari têm uma elegância incomum. A habilidade para dividir as coisas; para colocá-las em proporção e conferir-lhes leveza e vivacidade encanta de imediato. No entanto, essa capacidade de criar relações nítidas e discretas – a elegância – projeta uma estranha sombra. Aquilo que foi feito para ser visto revela uma outra natureza: uma estrato aquém ou além de si, a que se refere, mas que não deixa ver. A definição precisa, a identidade plena e complexa dá lugar a um jogo de deslocamentos sem fim. Não falo de essências e aparências, de fenômenos enganadores ou de ilusões perversas. Foi-se o tempo. Hoje anda difícil saber o que está do lado de cá, do lado de lá. Se é que isso ainda existe. Mas nesses quadros a imagem adquire um estatuto todo particular. O que se dá a ver tem uma consistência espectral. A aparência das coisas tem uma duração excessiva, ou então revelam um adiamento inquietante. Os objetos mais graciosos têm um ar de fantasmagoria. A autonomia da imagem – um dos orgulhos dos nossos dias – pode não ser mais que a sombra de uma realidade assustadora.