2025
Frestas - Felipe Scovino
Esta exposição apresenta um recorte das obras mais recentes de Renata Tassinari, com foco na geometria e nas situações intervalares que sua pintura apresenta. O uso de um léxico construtivo no qual a estrutura pictórica é apresentada de maneira fragmentada, faz com que sua obra aponte para um estado de constante transformação. Cor e forma não são fixas pois estão sempre elucubrando metáforas acerca da paisagem ou de temas intrínsecos à arte. Além disso, seu trabalho também está interessado em transpor a bidimensionalidade indo em direção a uma objetualidade. Renata, afinal, põe em suspeita o formato tradicional da pintura.
A exposição também celebra a trajetória de uma artista que teve início em meados dos anos 1980. Em São Paulo, sua cidade natal, Renata estuda na Escola Brasil e tem aulas com uma rede heterogênea de artistas que tem a pintura e um campo ampliado sobre a escultura como temas de suas pesquisas. São artistas como Carlos Fajardo, Dudi Maia Rosa e José Resende. Em 1980, forma-se em artes plásticas pela FAAP e em 1985 participa de suas primeiras exposições iniciando uma consistente trajetória institucional. Os anos 1980 foram uma década em que a pintura encontra eco com o experimentalismo de materiais, formas e conceitos, como foram os casos de Cristina Canale, Delson Uchoa, Karin Lambrecht, Leda Catunda, Luiz Zerbini e Nuno Ramos. E o trabalho de Renata mergulhou intensamente nessa vertente, tendo como referentes o signo construtivo e a experiência de uma estrutura retilínea ou grid que é constantemente manipulada e reorganizada por parte de alguns dos expressionistas abstratos. Nas suas primeiras obras, explorando uma pintura gestual e tangencialmente informal, já interessava à artista a criação de campos monocromáticos, razoavelmente geométricos, e a experiência com os contrastes de cor. A materialidade e as pinceladas mais espessas de tinta à óleo introduziram inconscientemente o que vemos nesta exposição de forma mais límpida: a espessura da cor. Ademais, no seu vocabulário pictórico eram incorporados elementos como madeira, cola e papel.
No início da década seguinte, a trama geométrica é mais clara e precisa. A experimentação com os materiais continua, com a cera se juntando ao óleo como meio de produção de suas pinturas. O crítico de arte Rodrigo Naves apontou que a cera cria “uma fina membrana entre aquilo que seria a cor original e a que realmente vemos”. Na primeira década dos anos 2000, Renata começa a investir em uma pintura sobre a superfície de material acrílico transparente sem abandonar o signo geométrico. Uma parte dessa superfície é coberta por uma camada espessa de cor, em pinceladas verticais, e a outra deixa entrever o papel branco posto sob a placa de acrílico. O contraste entre as cores se dá na montagem da obra por combinações ressaltando os contrastes e texturas.
Descrevi esse sintético contexto da obra de Renata na tentativa de retornar ao passado para revelar as circunstâncias dos trabalhos da presente mostra e expor o nascimento e, depois, a repetição de interesses por parte do seu trabalho que continuamente vem não só amadurecendo, mas originando diferenças a partir de interesses ou pesquisas de longo tempo. Por exemplo, a matriz geométrica possui um caráter em sua obra de busca por uma expansão. O grid modernista, signo recorrente na sua trajetória, está hoje partido ou em constante recombinação. A série Beira ilustra muito bem esse aspecto. Com um aspecto formal que remete à moldura ou ao seu regime de fragmentação, as Beiras se colocam de forma inquieta e errática desejando alçar voo. São como pinceladas espessas ou objetos luminosos que intensificam potências tanto da luz quanto da cor no espaço. Enquanto estruturas em aberto apontam para múltiplas possibilidades de existência e associação. Nesse sentido, são projetos pois estão sempre especulando o porvir. Algumas parecem derivadas de retângulos que tiveram sua estrutura rompida com suas partes impulsionadas ao espaço. Outras são partes isoladas, como frestas mesmo, que partindo de uma intuição sensível e de uma dimensão instável assinalam uma vibração elaborada das cores. Apresentadas em conjunto, em um repertório que tensiona uma espécie de acidente geométrico, as Beiras se fundem em um panorama harmonioso, musical, sugerindo a imagem de uma partitura.
Sua obra é fresta porque persegue o intervalo, molda o vazio, se interessa em criar sulcos porque ela mesma é uma fissura. A sua forma composta por meio de combinações ou montagens, para além de revelar suas frações, denota o interesse da artista em transmitir um estado de transitoriedade à pintura, suporte que tradicionalmente é visto como da ordem da planaridade e do repouso.
A cor nas obras da artista corre. Mesmo concentrada, adquirindo espessura, a cor deseja o movimento. A estrutura de acrílico, preenchida de cor, longilínea e quebradiça condiciona um deslocamento. Em Marola-Narciso (2022), o sentido horizontal e distanciado das barras de acrílico, com parte de sua estrutura pintada em tons monocromáticos, evidencia a metáfora de um rio ou de um universo das águas em movimento. São metáforas como essa, permeadas pela translucidez da forma, que transmitem à pesquisa de Tassinari um lugar de invenção para a pintura.
A metáfora da água continua em suas obras recentes. Ultramar e Copacabana (ambas de 2024) por exemplo, são filiações desse mesmo universo. Seu trabalho é devoto à larga experiência construtiva que costurou a passagem do moderno ao contemporâneo no campo das artes visuais brasileiras. A elasticidade e organicidade da forma proveniente pelo uso de diferentes texturas ou materiais que indagam a natureza do suporte, a cor enquanto um mecanismo de organização e sistematização de espaço e o intervalo (ou fresta) não como sinônimo de vazio mas experimentação de volumes são circunstâncias advindas de um lastro da vontade construtiva brasileira e que foram ressignificadas por Renata. Ultramar e Copacabana reportam ao vocabulário geométrico, mencionam por meio de suas frestas verticais o tensionamento da perspectiva proposto pelos concretos e neoconcretos, particularmente os Objetos ativos de Willys de Castro, mas encontram um lugar muito próprio. Por um lado, evocam o estado de uma placidez provocada pela cor em associação com seus títulos que acabam por apontar o índice de calmaria das águas. Por outro, quase que como oposições que se aliam, o espelho entre as frestas convoca o espectador a fazer parte da estrutura. Ele não é um agente passivo diante da obra mas parte estruturante da sua composição. Um elemento de tensão e estranhamento é adicionado, até porque nos vemos apenas parcialmente. E, como já apontado, o componente da fratura ou da composição em partes é elemento fundante no pensamento de Renata.
Sua obra parece se desmontar delicadamente em elementos discretos na certeza de que eles serão reexperimentados enquanto totalidade irredutível a partes. Renata não nos deixa esquecer que o artista é aquele que apresenta problemas e instiga o pensamento e o desafio. Nesse caso, um trabalho votado à disciplina construtiva que afetivamente e sem diletantismos expõe dilemas. Em Narciso II (2023) e Sicília (2024) o que se impõe são a dimensão antropomórfica e o caráter de reflexividade. O espelhamento provocado insere o corpo (fragmentado) do espectador dentro da obra, em uma premissa de reinvenção e reelaboração constantes da geometria. É o momento em que o signo construtivo, tão caro a Renata, se torna incerto, ambíguo e impreciso. São obras que apresentam a disponibilidade para construir novos e surpreendentes jogos. O sujeito é transposto para o trabalho nesse lance narcísico de se ver mesmo que recortado entre as frestas da moldura acrílica espelhada; é levado a sentir e pensar a potência da maleabilidade da obra, superando a inércia da tradição e propondo o real e o imediato como forma de prospecção vasta e permanente.
Frestas também são rompimentos, rupturas. Obras como Verde 2L (2017), Carbono cruz (2020) ou Vermelho dois L (2022) habitam essa atmosfera que pode ser traduzida como inquieta. Uma geometria aberta, expansiva, que possui a disponibilidade incessante de repropor, alterar e renovar ordens. A cruz de Carbono cruz, por exemplo, tem feixes desiguais e sua cor densa e fria revela mais distanciamento do que fascínio. Ante a pressão do uniforme e do padrão impostos pelo capital, o que se coloca é uma geometria a construir um espaço de manobras aberto ao dessemelhante. Vermelho dois L assinala que a certeza da continuidade ou da inteireza não estão garantidos, pois além da fratura da sua forma, a obra é um verbo de ação: ela se move, levanta, se abaixa, anda, recua, se afasta. São “Ls” que possuem suas próprias dinâmicas e em certa medida se opõem: a intensidade da cor faz com que um seja mais quente, o outro frio; seus vértices apontam para direções distintas como se estivessem em um estado de insubmissão. Simultânea, incessantemente, o trabalho articula e desarticula unidades. A mesma combinação geométrica que capta e reproduz o modelo também o relativiza e fragmenta. A linha tem vontade própria pois deseja e está absorta em um sucessivo movimento projetivo. A obra responde que não existe a crença na arte como modelo pois ela se faz enquanto um registro da especulação, já que cabe também ao artista pensar o impossível.
Janelas também podem ser frestas. Quadrado vazado amarelo (2017) ratifica essa imagem. O vazio alude a uma vista e simultaneamente a uma estrutura arquitetônica. A alternância de cores que o plano oferece são como precisos recortes no espaço que também apontam para uma pintura que constantemente transita e renova. O vazado assinala igualmente uma “economia” cromática típica do vocabulário de Renata, remetendo à expansão dos seus campos de cor e a sintaxe de elementos isolados e articulados. Essas características, por sua vez, constituem uma conexão muito particular que é o balanço entre a sensorialidade e a herança construtiva. A tessitura pictórica produz esse regime sensorial. A superfície da obra se torna vibrátil, com a sua composição cromática induzindo um estado de difusão luminoso, instável, trepidante. Como efeito, a solidez da janela se tornou permeável à sua própria luz.
Avessa a progressões lineares, se movendo entre intervalos, a combinatória geométrica de Renata é constituída ambiguamente por choques e associações, impregnadas pelo tônico imprescindível da cor. Intensa e diversificada, essa insólita geometria se dá também por meio de incisões e encaixes de madeira, moldura acrílica e superfícies reflexivas. Enfim, uma soma de recursos de aproximação e intensificação do plano pictórico a manifestar a urgência de uma síntese disjuntiva. O contínuo e o descontínuo se estranham e convivem – vejam o caso do espelhamento do espectador sugado pela trama geométrica e incorporado ao plano pictórico –, entram em conflito e se integram nessa justaposição trôpega, mas decisivamente engenhosa, de padrões geométricos. Mesmo que formado por unidades, o trabalho se concebe enquanto um conjunto, um todo insinuante. O olho, intrigado, tende a refazer continuamente esse intricado circuito que é sempre renovado. É o modo da geometria sistematicamente produzir dobras, se aproximar de metáforas caras ao indivíduo e nos falar afetivamente.
Felipe Scovino